A tentação só é possível na medida em que aquilo que suscita desejos proibidos ecoa algo que trazemos em nós
Padre Samuel Fidelis
Arquivo pessoal/ Padre Samuel Fidelis
As tentações são um tema recorrente na espiritualidade cristã. Aliás, até, mais que isso: elas estão na boca do povo. Isso lá onde a gente se encontra com algo que é “ilegal, imoral, ou engorda”. Na verdade, todo mundo se vê, vez ou outra, inclinado a fazer aquilo que não devia, puxado ou empurrado na direção de um objeto de desejo, que, ainda que por um segundo, pareça prometer o “céu” e, depois de mordido, nos jogue na “lama”.
Dada a nossa herança judaico-cristã, estaríamos – seja-me permitido o trocadilho infame – “tentados” a pensar no diabo como a origem da “tentação”. É fato: basta ter alguém arrastando cadeira no apartamento de cima, mudar de chefe, receber em casa o “combo” da família do cônjuge e quem tiver dúvidas da existência do mal ou do diabo, logo muda dia ideia e se constrange. Em maior ou menor medida, com mais ou menos ironia, o mal existe no mundo e nele atua. Isso para não pensar no que catalisa entre nós a intolerância, os crimes, as injustiças…
O fato é: claro, que com o advento da psicanálise, com a descoberta freudiana de que o “ ‘eu’ não é senhor em sua própria morada” se bagunça um pouco nossa relação com as tentações, tentações e o nosso entendimento acerca do “diabo”. Descobrimos, com Freud, que há instâncias em nós que servem de base para qualquer desejo obscuro. Diríamos: o “mal” que representa o “diabo” nunca é realmente o protagonista, mas sempre o coadjuvante.
A tentação, sobretudo, se for forte e recorrente, é sempre fruto de uma lacuna anterior a ela. Qualquer vício, enquanto estado febril, não é causa da doença, mas a sua consequência. A tentação só é possível na medida em que aquilo que suscita desejos proibidos ecoa algo que trazemos em nós.
Nesse sentido, chamam muito a atenção, as narrativas dos Evangelhos, a respeito das tentações de Jesus no deserto. Observemos bem os “temas”:
A primeira delas diz respeito à fome que se realiza na prazer, digamos “gustativo” (Mt 4, 3). A tradição lê, à luz dela, que cada um precisa estar bem atento a busca por aquilo que é “bom para si” mas pode sacrificar o “bem para o todo”. As vezes a vazão imediata de um sentimento nos faz colher consequências para as quais um momento de prazer não vale a pena.