Por vezes, emoções são rio, por vezes, ‘amar é um deserto e seus temores’.

Foto do Padre Samuel Fidelis
No texto, Padre Samuel Fidelis reflete sobre as tempestades e águas da vida

A vida tem suas tempestades. Existimos num ciclo contínuo de aguaceiro e de carestia. Às vezes, é dia de sol, em que somos aquecidos pela presença. Às vezes, é chuva, em que sentimentos encharcar e inundam. Há dias de nuvens, onde se vê muito menos do que se precisa. Há dias de céu estrelado, onde sobra inspiração. Por vezes, emoções são rio, por vezes, ‘amar é um deserto e seus temores’.

Se repararmos bem, no livro do Gênesis, o Arquiteto do Universo se preocupa em dar ciclo ao movimento das águas. YHWH separa as águas superiores das inferiores (Gn 1, 6-7). Assim, se cria a ordem, as separações que são sempre importantes para que o que é ‘parecido’ não se confunda. Reside aqui uma oculta sabedoria: não é por ser ‘água’ que deve estar no mesmo lugar. É sempre um indício de kaos, a incapacidade de fazer distinções.

A existência é fluida e efêmera. Panta Rei (tudo passa), dizia Heráclito. Para o filósofo, não é possível mergulhar duas vezes no mesmo rio. Na ‘passagem do existir’, nas águas que constituem a vida, nem o ‘rio’, nem nós somos os mesmos.

Somos feitos de água: hora nuvem, hora rio, hora mar. Em sua peça Tempestade, Shakespeare coloca nos lábios de Próspero: somos ‘feitos da mesma matéria dos sonhos’. Pois bem, brinquemos com as palavras.

A prosperidade, a graça que é o existir, nos seus ciclos de chuva e de carestia, consiste em fazer da impermanência um impulso. Somos feitos da água da chuva, dos rios e do mar. Somos feitos de sonhos que sobem, descem e se revolvem, hora como enchente, hora como calmaria.

A vida é sonho e água. Talvez por isso as Escrituras, que, sendo um Texto Sagrado, são também testemunha do que há de mais singular na alma humana. Insistam nos ciclos de deserto e de chuva.

Solidão, kaos, tumulto, instabilidade. Disso estão cheias as páginas das Bíblia. É, particularmente no deserto e na chuva que Israel experimenta suas maiores transformações. YHWH ensina a Seu Povo que a vida só se desfruta em estado de provisório.

O Salmo 125 assevera que as lágrimas em momentos de deserto, de angústia, de exílio e de transição, com a Graça de Deus, se convertem em torrentes e, essas, mudam a sorte.

A alusão desse trecho das Escrituras é à região árida do Negueb. Durante as chuvas sazonais do inverso, as águas descem da parte alta de Israel e vêm arrastando tudo, numa enxurrada, até desaguar no sul do país, em que está o deserto do Negueb.

O que num primeiro momento é kaos, já que a enchente vem arrastando tudo, acaba sendo uma fonte de prosperidade, uma mudança de ‘sorte’. Isso porque junto com as águas vem a ‘matéria’ orgânica que fará a área desértica se tornar fecunda.

Por isso o salmista diz: ‘mudai a nossa sorte, ó Senhor, como torrentes no deserto (Negueb). Os que lançam as sementes entre lágrimas, ceifarão com alegria’ (Sl 126).

Aprendamos das nuvens! Não me parece que o universo lamente suas estações. Talvez seja a experiência de vida que o tenha tornado imune a ansiedades. Reparo que o céu não se constrange de exibir a beleza das contradições do vento, da chuva, da impermanência. Estejamos convencidos: nossas almas têm muito a aprender com a nuvens. A começar, de como fazer de suas lágrimas, fecundidade.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *